sábado, 13 de julho de 2019

Apocalipse, Purgatório, Pária! [Scott Cederlund]

Apocalipse, Purgatório, Pária! Uma Leitura Visual de "Demolidor: A Queda de Murdock" de Frank Miller

Apocalipse, Purgatório, Pária! Uma Leitura Visual de "Demolidor: A Queda de Murdock" de Frank Miller

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Depois do recente lançamento da IDW's Artist Edition de Daredevil: Born Again (no Brasil, Demolidor: A Queda de Murdock), eu decidi desenterrar minha velha cópia (uma edição de cerca de 1987), e reler o livro. É um livro que sempre apreciei mas não pensei que retornaria a ele após tanto tempo quanto a Batman: Year One de Miller e Mazzucchelli, uma história que eu anteriormente pensava ser superior entre as duas. Ouvindo pessoas comentando avidamente a Artist Edition, eu quis prestar atenção a como Miller, Mazzucchelli e os coloristas Christie Scheele e Mazzuchelli (apesar dos créditos registrados como Richmond Lewis e não Mazzuchelli como contribuinte em algumas cores) contam a história da queda e renascimento de Matt Murdock, o aventureiro cego conhecido por Demolidor.

Com a recente Artist Edition, o holofote foi posto sobre David Mazzucchelli, o que está tudo bem. Ele merece os elogios porque Born Again é visualmente bem deslumbrante. É provavelmente um em um punhado de livros de artistas verdadeiramente excepcionais lançados pela Marvel durante os anos 1980 e ainda permanecem notoriamente fortes hoje em dia. Você pode até ver as raízes desta maneira que Mazzucchelli contou Asterios Polyp em algumas das páginas de Born Again. Mas isto é apenas parte da história.

Born Again pode realmente ser a melhor escrita de Frank Miller porque é uma das suas únicas histórias onde ele não vai pela via sensacional. Tudo mais que se segue nesta época, de The Dark Knight Returns e Elektra Assassin a Sin City e The Dark Knight Strikes Again vai pela via de uma narrativa grande, ruidosa e bombástica. Esta é a maneira que Miller tem feito por mais de vinte anos. Com Mazzucchelli aqui e em Batman Year One, Miller está construindo uma história em volta de seu personagem que só é tão grande quanto o mundo de tal personagem. Seja a Nova Iorque do Demolidor ou a Gotham City, Miller constrói estas histórias em volta dos personagens e não das lendas ou mitos que ele percebe estar em seus personagens.

Figure 1: Apocalypse, Purgatory, Pariah!

No ínterim das primeiras três publicações, nós vemos justamente o quão longe Matt cai enquanto o Rei-do-Crime sistematicamente destrói a vida do proeminente advogado. De uma grande e luxuriosa cama para um quarto barato de hotel para ficar enroscado num beco, Miller e Mazzucchelli tiraram tudo de Matt Murdock no espaço de três páginas. Ao receber estes números em uma frequência mensal, leva um tempo para notar o que Miller e Mazzucchelli estavam fazendo aqui. E apesar de não ser tão temático como aqui, a imagem de Matt Murdock dormindo é repetida várias vezes no livro, incluindo uma sequência onde Karen Page dorme calmamente enquanto agarra a fantasia do Demolidor, como se o mero tecido fosse suficiente para lhe dar a paz e proteção que ela precisa. É como se mesmo em meados dos anos oitenta Miller notasse quão longe o personagem de Matt Murdock foi levado após seu motor inicial e quisesse acordar o personagem para um dia novinho em folha.

Figure 2: Neve

Quando os primeiros números de A Queda saíram na Demolidor mensal regular, meus amigos e eu juravam que Miller estava fazendo muitos dos layouts, se é que não estava desenhando o livro todo sozinho. Não estou tão certo se ainda vejo tanta coisa de Miller e Mazzucchelli na obra de Mazzucchelli, mas Mazzucchelli estava desenhando os primeiros números de uma maneira bem padronizada de estilo de super-herói que era reminiscente do trabalho que Miller fez no primeiro Demolidor.

Eu amo nesta cena anterior que você pega uma ideia do uso criativo das cores (mais sobre isso mais tarde também). Olhe como Christie Scheele usa o branco da página como neve empilhando enquanto o Demolidor anda por Nova Iorque sem rumo. O primeiro painel, com as linhas cruzadas que o Demolidor atravessa, cria realmente o ambiente e elementos em que a história está acontecendo. E o vívido fundo azul não parece nada que acontece na natureza mas faz o vermelho da roupa do Demolidor saltar a página.

Figure 3: Cor

E no segundo número desta série (cores creditadas a Mazzucchelli), você vê cores usadas dessa forma de maneiras que dificilmente veria em qualquer lugar. As cores brilhantes e chapadas ainda funcionam nesta era de coloração "realista" por computador que tira demais a personalidade da forma que é usada tantas vezes, Não existe tentativa de ser realista aqui; em vez disso Mazzucchelli (e Scheele no restante do livro) usam as cores para realçar a história. Isto se torna uma peça tão chave de como a história é contada que eu me pergunto quanto do impacto da própria história é perdido na Artist Edition. O brilho rosa-púrpura do segundo painel e na sequência o uso de pontos Ben-Day no terceiro painel recria o brilho neon da Nova Iorque dos anos 1970 e 1980, dando à cena uma sensação levemente lúgubre sem mostrar nada dos bares de nudez ou becos de drogas que eu gosto de imaginar cheios de lixo na Cozinha do Inferno de Miller.

E então em uma página, você vai das cores frias de Nova Iorque para as cores quentes de uma viciada no México. Olhe para o inexplicável muro vermelho detrás de Karen Page. Ele banha toda a sala num calor que quadrinhos são comumente incapazes de expressar. As cores não estão tentando ser realistas ou apropriadas para pintura, mas estão influenciando muito dos sentimentos que o leitor tem enquanto lê o livro. Eu quero essas cores de volta nos meus livros de super-heróis.

Figure 4: Triângulo 1- Pietà

Um tanto de coisas é bastante marcante aqui:

  1. A óbvia referência à Pietà de Michelangelo. É uma imagem usada várias vezes mas porque é uma bem poderosa. Não há dúvida, baseado na iconografia da imagem, que a freira Maggie é mãe de Matt.
  2. Maggie encontra Matt na velha academia abandonada que seu pai usava para praticar boxe. Estas maravilhosas riscas rosadas (novamente com o uso eficaz das cores) mostra de fato a luz passando pelas janelas embutidas.
  3. Esta é uma figura bruta. O sobreamento nas calças de Matt parece algo que Bill Sienkeiwicz faria, e não Mazzucchelli.

Este também representa o ponto mais baixo para Matt no livro (e em todas as histórias de Miller em Demolidor). Eis Matt, quebrado e desgastado, um homem despedaçado. Seu único refúgio é a igreja/a mãe/o anjo para seu demônio. Este é também a primeira das composições triangulares recorrentes no livro. Estas são imagens com bases fortes (pernas do Matt) que direcionam o olho para uma imagem ou conceito simples. A imagem aqui é dupla. A primeira é a face de Maggie, a mãe que nunca vimos ou sequer pensamos em ver. É claro, neste ponto, nós realmente não sabemos quem é esta freira. Por ora, ela é apenas alguém que perambulava por velhas academias.

O outro ponto focal é sua cruz, trazendo de volta todo o catolicismo à história de Miller. Eu não creio estar lendo demais ao ver Matt como uma figura semelhante a Cristo em que esta é a versão da descida ao inferno em três dias, apenas para levantar-se novamente após a mesma. Mais tarde, Miller e Mazzucchelli farão da cruz um ponto focal óbvio, algo que não se pode ignorar mas apenas olhar e refletir.

Figure 5: Te agradeço por ouvir, Mr. Urich.

Aqui, eis o que HQs fazem.

No site The Comics Journal, Dan Nadel olha para esta mesma sequência de Ben Urich ouvindo pelo telefone o som de um homem sendo morto. Nadel concentra-se na imagem preto-e-branco da Artist Edition e escreve "este é um afastamento radical do realismo, e um que Mazzucchelli toma por vezes o bastante ao longo do livro para fazer de cada um destes momentos uma pontuação importante ao longo da narrativa". Ele pensa que é mais surpreendente desta forma mas eu penso que é aquele rosto vermelho e aqueles olhos amarelos chocantes que fazem sua sequência funcionar.

Por alguma razão, este terceiro painel me clicou desta vez ao ler o livro porque dificilmente você vê qualquer artista disposto a exagerar seu estilo ou cor o suficiente dessa forma. O mundo em volta de Ben segue mas ele é arrancado disso, ouvindo uma enfermeira matar um dos homens que poderia restaurar o bom nome de Matt neste livro. Mazzucchelli e Scheele realmente empurram Ben na sequência ao passo que a realidade do local de trabalho é pressionada ainda mais no fundo.

A imagem não se tornou uma representação figurativa de Ben, mas uma metáfora. É simbólico como o retrato de Ben, os seus detalhes, estilhaçam-se quanto mais ele ouve. Ele não se torna uma pessoa por um momento, ele torna-se uma viva emoção de medo na página. É um momento realmente expressionista que a maioria dos artistas evita ou teme hoje em dia. Você raramente vê alguém soltar um painel como este, onde a imagem e cores tão fortemente transmitem um estado de mente em vez de uma gravura do momento.

Figure 6: Somos Família

Quando Karen Page não pode encontrar o homem para quem ela vendeu para consertar, ela encontra seu melhor amigo. Aqui é o último painel que mostra duas pessoas se encontrando neste mundo louco e perigoso. Mesmo sem Matt, esta sequência encapsula perfeitamente a história de Miller e Mazzucchelli. Assim como a equipe do Daily Bugle recuou para o segundo plano durante a chamada de telefone de Ben, aqui Mazzucchelli faz o mundo circundar e erguer0-se sobre duas pessoas que têm somente sido feridas por um homem que ambos amam.

Figure 7: Triângulo 2 - Trindade

Outra coisa que eu notei lendo o livro desta vez é como Mazzucchelli continua a usar a composição de triângulo. É claro, aqui ele te bate na cara com uma. Esta imagem de Maggie rezando ao lado da cama do filho, com as linhas de perspectiva ainda traçadas tão claramente sempre me incomodou. O foco na cruz parece tão óbvio e pesado aqui. Mas o triângulo traçado também empurra Maggie e Matt em seu próprio mundo. Existem fronteiras (limites ou talvez conexões) entre eles que não existem entre ninguém mais naquela sala ou naquele livro.

E tem aquela cruz de novo. Bem, é uma cruz diferente mas torna-se o foco das linhas de perspectiva. Não tem como não olhar e hesitar por um momento nela. Um momento de reflexão ou de oração? Cruz, filho, mãe. Ícone, herói, freira. O morto, o moribundo e o vivo.

Figure 8: KBLAM

Eu simplesmente amo este painel do traficante de drogas da Karen atirando. KBLAM! Preciso fazer disso o banner do site.

É uma imagem simples e uma pose bastante padrão mas é feita chocante pela forma que é apresentada. Novamente, simplesmente não se vê mais muito disso.

Figure 9: Triângulo 3 - Salvação

Figure 10: Triângulo 4 - Amor

Olha, mais triângulos. Usando um truque narrativo similar ao abrir os primeiros três números com imagens da condição deteriorante do sono de Matt, eis o fim de um número e o início do próximo, com Matt finalmente resgatando Karen. Ou será que é Karen finalmente resgatando Matt? Enquanto não sendo bem uma Pietà, Matt encontra proteção e esperança nos braços das duas mulheres que fazem falta em sua vida. Estas duas de Karen jogam bem uma com a outra. A primeira está na neve, numa pesada jaqueta azul que Matt pegou em algum lugar na rua. Como em muito do livro, Christie Scheele pinta esta em cores frias.

Contraste com a tonalidade alaranjada/avermelhada que está na segunda imagem. É muito mais quente mas mais carregada emocionalmente. Temos o lançamento da primeira imagem. Esse é o mundo deles naquele momento. A segunda imagem mostra duas pessoas que desesperadamente amam uma à outra mas ainda há tanto que ambos têm pelo que passar. Há lágrimas de alegria na primeira imagem mas a segunda imagem mostra quanta dor ambos os personagens ainda têm que sofrer.

Figure 11: Foggy

De muitas maneiras, Foggy é um personagem de fundo em A Queda mas também é peça chave em como o Rei do Crime destruiu a vida de Matt Murdock. Miller esquematiza tão sutilmente mas claramente ele "empregou" Foggy dando-lhe um emprego e ainda menosprezando-o um pouco com o trabalho ilegal que ele dá a seu novo advogado. Não é difícil imaginar o Frank Miller dos últimos vinte anos surrando esta trama para casa, fazendo de Foggy o advogado sujo que Matt foi alegado ser. Talvez ele acabaria vendo Foggy fazendo cocaína antes de ir à Corte defender Turk ou algo do tipo. Mas o Miller dos anos 80 apenas deixa uma linha aqui ou ali, mostrando-nos que enquanto Foggy pode parecer que apenas está na periferia de sua história, ele na realidade é um jogador chave no xadrez que o Rei do Crime está jogando.

Figure 12: BLAMM klik

Como o KBLAM!, esta cena é feita somente pelos efeitos sonoros, a resposta ruidosa da arma e a repetida e familiar obturadora da câmera de Glori. Esta é também a cena onde Ben consegue ser herói. Ele é o Demolidor que vem para o resgate de Glori. Não é que ela pense precisar de resgate; ela apenas está fazendo aquilo pelo que foi contratada.

A Queda nos mostra tantas convenções dos quadrinhos que eram populares e usadas nos anos 1970 e 1980 que podem ter sido abandonadas, como os efeitos sonoros. Existe um objetivo para a forma que estes sons invadem a imagem, levando a violência para um domínio visceral de uma forma que as imagens de Mazzucchelli simplesmente não podem. Você pode ver e "ler" as imagens acima se os efeitos de som não estivessem ali. mas você não compreenderia o contraste da arma e da câmera. Estes são ambos sons muito comuns e reconhecíveis que você poderia preencher com sua imaginação mas Miller organiza de uma forma que ambos parecem invadir um ao outro.

Figure 13: Bandeira

Voltando aos meados dos anos 1980, Miller amava ter seus vilões envoltos na bandeira e no patriotismo. Ele o faz em The Dark Knight Returns e em Elektra Assassin. Eu quase acreditei que o Rei do Crime era o herói de sua própria história.

Figure 14: Parceiros

Novamente o triângulo, mas desta vez, está invertido e de cima para baixo. O ponto está no inferior, invisivelmente traçada entre as cabeças de Matt e Ben. Ele os conecta neste momento de … não é uma vitória aqui. É mais uma finalização e quase surpreendentemente, ambos estão ainda vivos ao fim. A Queda é uma história primariamente de Ben, a história de um repórter que poderia estar cavando demais para uma nova história, assim como Matt. Ambos têm que ser derrubados antes que possam ver a luz do dia.

Este é um livro sobre a tentativa de assassinato da alma de um homem (hipérbole, eu sei) e Miller dirige tantas cunhas entre Matt e todos que se preocupam com ele, mas ao fim de A Queda, é Matt e Ben que estão juntos, não Ben e Foggy. Foggy é ultimamente um personagem de apoio mas você pode argumentar que esta é a história de Ben tanto quanto é a de Matt. E este fim funciona; ambos os homens conseguem uma certa vitória com Nuke atirado na mesa do repórter.

Figure 15: Freewheeling

Ao passo que as últimas páginas seguem, esta sempre me incomodou um bocado. Os personagens mereceram mesmo este momento juntos? Karen, predominantemente em branco, parece limpa e sóbria mas ela mereceu o direito de segurar o braço de Matt dessa maneira ainda? É claro que encontrá-la é este empurrão final para fora da escuridão que Matt precisava, então este é talvez seu momento de purificação.

Mais que isso, a mera imagem me perturbava. A felicidade que os personagens estão expressando simplesmente vai contra tudo mais nesta história de uma forfma que a alegria simplesmente parece fora de lugar. Mas então nesta última leitura de A Queda, eu notei que esta imagem me lembrava de uma coisa.

Figure 16: Bob Dylan: Freewheeling

E repentinamente, este tornou-se meu momento favorito do livro todo, um momento de paz e felicidade.


1 META

Table 1: META
Título Original Apocalypse, Purgatory, Pariah! A visual reading of Miller and Mazzucchelli’s DAREDEVIL: BORN AGAIN
Autor Scott Cederlund
Link Original http://wednesdayshaul.com/wordpress/2012/08/30/apocalypse-purgatory-pariah-a-visual-reading-of-miller-and-mazzucchellis-daredevil-born-again/
Link Arquivado https://archive.fo/6B81I

Created: 2019-07-13 sáb 14:30

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