domingo, 17 de março de 2019

O Garoto que Inflava o Conceito de 'Lobo' [Spencer Case]

O Garoto que Inflava o Conceito de 'Lobo'

O Garoto que Inflava o Conceito de 'Lobo'

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Uma das fábulas de Esopo fala de um garoto pastor que, do alto do seu tédio, repetidamente gritava "Lobo!" quando não havia lobo presente. Como resultado, os aldeões perderam fé em seu testemunho,, e ninguém mais ouvia seus alertas quando um lobo de verdade apareceu para devorar seu rebanho. A história nos mostra como é ruim mentir e por que é do nosso interesse sermos honestos. Mas mentir não é a única manipulação da linguagem que degrada a verdade. Considere uma história levemente diferente.

Suponha que em vez de um garoto pastor, existam algumas dúzias. Eles estão cansados de os aldeões dispensarem suas reclamações sobre criaturas menos apavorantes como cães dispersos e coiotes. Um deles propõe um plano: eles começarão a usar a palavra "lobo" para referir-se a todos os animais ameaçadores. Eles concordam e o novo uso cai na moda. Por um tempo, os aldeões de fato ficam mais suscetíveis a seus avisos. O plano sai pela culatra, porém, quando um lobo de verdade chega e o grito "Lobo!" falha em surtir o alarme que antes surtia.

O que os garotos da história fazem com a palavra "lobo", intelectuais modernos estão fazendo com a palavra "violência". Quando pessoas ordinárias pensam sobre violência, elas pensam em coisas como bombas explodindo, tiros de arma de fogo e brigas. A maioria das definições de dicionário para "violência" menciona dano ou força físicos. Acadêmicos, ignorando o uso comum, falam de "violência administrativa", "violência de dados", "violência epistêmica" e outras formas até então desconhecidas de violência. A filósofa Kristie Dotson define a última como se segue: "Violência epistêmica em testemunho é uma recusa, intencional ou não, de uma audiência em reciprocar comunicativamente um intercâmbio linguístico devido à ignorância perniciosa" 1.

O que Dotson chama de "violência epistêmica" não é violência de acordo com o uso ordinário ou do dicionário. Se intelectuais podem recrutar a palavra "violência", então presumivelmente eles podem fazer o mesmo com palavras mais fortes. Então, por que não chamar violência epistêmica de "estupro epistêmico"? De fato, por que não "genocídio epistêmico"? Afinal, todo genocídio destrói um povo no todo ou em parte, e parte de destruir um povo é destruir sua voz. Talvez isso possa ser feito por atos sutis de silenciamento. Isto é absurdo, claro, mas não há modo baseado em princípios de evitar movimentos como esse se aceitarmos cunhagens como "violência epistêmica".

A palavra "gaslighting" também tem sido abusada dessa forma. O termo surgiu de uma peça de 1938 do dramaturgo Patrick Hamilton, Gas Light, que depois foi adaptada para filmes na Bretanha e nos EUA, ambos com o nome Gaslight. O enredo é centrado numa mulher que começa a perder a firmeza na realidade por causa das mentiras patológicas do marido. De acordo com Dictionary.com, praticar "gaslight" em alguém é "fazer com que (uma pessoa) duvide de sua sanidade mediante uso de manipulação psicológica". Gaslighting é caracterizado por mentira descarada e pervasiva. O perpetrador pode confiantemente negar que a ouviu dizer algo que claramente disse momentos atrás.

Alguns intelectuais definem "gaslighting" de maneira tão frouxa que não é necessário envolver mentira descarada; desta forma, a fala que eles desgostam pode ser chamada de "gaslighting". Dois professores de ciência política na Seattle University escrevem: "Assim como o processo de supremacia branca não precisa que aqueles que são cúmplices entendam a natureza racista de suas ações, a consciência também não é determinativa de se o processo de gaslighting racial está ocorrendo"2. Exemplos de gaslighting racial, de acordo com eles, incluem grupos dominantes "policiando o tom" de minorias que têm todo direito de estar irritados sobre sua opressão e - aparentemente - expressar qualquer opinião conservadora acerca de raça.3

A filósofa Rachel McKinnon também faz o mesmo. Após descrever com precisão como A palavra "gaslighting" adentrou a linguagem e o que ela costumava significar, ela escreve:

Porém, não é este tipo de gaslighting que estou interessada para os propósitos deste artigo. Em vez disso, estou interessada na forma mais sutil, geralmente não intencional,onde o ouvinte não acredita ou expressa dúvida sobre o testemunho de um falante. Nesta forma epistêmica de gaslighting, o ouvinte do testemunho expresa dúvida sobre a confiabilidade da testemunha em notar os eventos com precisão. 4

McKinnon apresenta o seguinte relato como um caso de gaslighting "sutil". Uma mulher trans, Victoria, pensa que James está deliberadamente errando seus pronomes preferidos, e pronuncia seu nome corretamente, a fim de aviltá-la. Sua colega, Susan, duvida dessa interpretação e sugere que Victoria pode estar emocional demais e propensa a ouvir insultos verbais (consistentes com um estereótipo acerca de mulheres trans). A negação da perspectiva autoritativa de Victoria supostamente torna Susan uma gaslighter. É claro, dado que todos nós cometemos erros com essas coisas, Susan pode ter feito a coisa certa ao oferecer um ponto de vista diferente. Mesmo que Susan esteja mal orientada, suas palavras nada mais são que uma forma sutil de gaslighting assim como uma vespa é uma forma sutil de lobo, ou um insulto é uma forma sutil de assassinato.

Como "gaslighting" é o rótulo de um tipo de mau comportamento que não tem outra designação conveniente, inflar o significado desta palavra trava nossa capacidade de comunicação. Palavras que são abusadas da forma que "violência" e "gaslighting" estão sendo não podem nem mesmo ser ferramentas retóricas úteis por muito tempo, dado que suas associações negativas dependem do significado que elas tinham antes destas manipulações. Em algum momento, novas palavras terão que ser infladas para substituir os termos desnecessariamente inflados. Por conseguinte, ativistas semânticos devem continuamente vasculhar a terra em busca de palavras emocionalmente impactantes para serem colhidas, então deixadas para trás como cascas semânticas desidratadas.

Eu usarei o termo de inflação conceitual para descrever o que acontece quando falantes afrouxam o uso de uma palavra emocionalmente impactante a fim de manipular uma audiência5. Inflação aqui refere-se à expansão do número de coisas às quais uma palavra se refere, mas também sugere uma analogia com a inflação monetária. Quando falantes expandem a referência de uma palavra a fim de anexar sua associação a novas coisas, eles diluem as associações da palavra original. Assim como imprimir papel-moeda em excesso diminui o valor da moeda, inflação conceitual degrada o efeito retórico de palavras e frases infladas.

Inflação de conceito é bastante semelhante a mentir. Immanuel Kant observou que mentir não seria eficaz num mundo em que todos mentem, já que não se acreditaria em ninguém. assim como mentir é parasitário de uma norma da verdade, inflação de conceito é parasitário de normas de uso. Em Através do Espelho, Humpty Dumpty fala a Alice: "Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que eu escolhi que significasse - nada mais, nada menos"6. Porém, Humpty Dumpty está errado; se as pessoas pudessem definir o significado das palavras como bem entendessem, a linguagem não seria útil para a transmissão de ideias.

Nem toda revisão de uma linguagem que expande a referência de uma palavra se resume a inflação conceitual. Suponha que numa sociedade estratificada somente a morte de uma pessoa nobre possa ser chamada de "assassinato". Reformistas que acreditam no igual valor moral dos nobres e dos camponeses pode começar a chamar a matança injustificada de camponeses de "assassinato" também. Como a palavra original foi artificialmente manobrada desde o início, a revisão é guiada por princípio e não por manipulação. E nem por isso designar a matança injusta de camponeses como "assassinato" diminuirá o crime de matar nobres em circunstâncias semelhantes.

Inflação conceitual genuína nem sempre é errada, porém. Em meados do século XX, autoridades coloniais britânicas exigiam que os birmaneses os chamassem pelo título honorífico, "Thakin". Os locais minaram a autoridade destes colonos ao chamar todo mundo de "Thakin" de forma que o título perdeu sua significância7. Neste caso os locais inflaram a palavra "Thakin" porque suas associações positivas estavam sendo usadas para finalidades moralmente ruins. Existem discordâncias bem intencionadas sobre se o inflação conceitual é moralmente justificável, mas existem também casos bastante límpidos de inflação grosseira, como é o caso com "violência" e "gaslighting". Outros exemplos conspícuos incluem "racismo", "sexismo" e "colonialismo".

Hipérbole implícita é um abuso de linguagem semelhante à inflação de conceito. Ela ocorre quando uma palavra emocionalmente carregada é apropriada como um termo de arte. Apesar de o falante reprovar o significado comum da palavra, a palavra original carrega sua força retórica ao termo estipulado. Hipérbole implícita é o oposto especular do eufemismo, a substituição de linguagem inofensiva ou indireta para algo mais perturbador - exempli gratia, "neutralizar o objetivo" em vez de "matar".

Da mesma forma que o eufemismo pode embotar a resposta emocional apropriada a coisas como matança, hipérbole implícita é uma estratégia para ativar respostas morais desproporcionais ou nada razoáveis. Um exemplo é "apagar/apagamento" em frases como "apagar as vozes de mulheres de cor", "apagar pessoas pretas" e "o apagamento de corpos negros". Quando a administração de Trump tomou a posição de que a palavra "sexo" nas leis federais de direitos civis significa "sexo biológico" e não "gênero", alguns ativistas acusaram-na de tentar "apagar o povo trans"8.

Não incidentalmente, quando penso em "apagar pessoas", penso no totalitarismo: polícia secreta levando pessoas na calada da noite para nunca mais serem vistas, ou um grupo inteiro de pessoas sendo expurgadas mediante genocídio. Os editos de Trump não fazem nada disso com pessoas trans, é claro. Nem as pessoas que criticam o "apagamento' de Trump dizem outra coisa; a terminologia insinua uma conexão com estas atrocidades que eles não se atrevem a explicitar. Presumivelmente, eles usam a palavra "apagar" como termo de arte por causa de sua bagagem, e não apesar dela. A mensagem real é sussurrada ao subconsciente, e nunca oficialmente reconhecida.

Este tipo de mensagem pode ser útil para incendiar a oposição às políticas do presidente, mas manipula a audiência pela tentativa de burlar sua racionalidade. Em retórica desse naipe, a função primária das palavras é transmitir emoção, não significado. Os termos são vazios, como cavalos-de-Troia linguísticos com intenção de contrabandear associações na periferia da mente consciente sem o cérebro superior notar a brecha de segurança. Além disso, é desrespeitoso às vítimas de atrocidades totalitárias explorar nosso horror a esses eventos mediante vantagens retóricas.

Comunicação eficaz requer veracidade, que é mais que não contar mentiras. Os falantes devem também dizer, ou pelo menos estar dispostos a dizer, o que eles realmente querem dizer. George Orwell escreveu que "O maior inimigo da clara linguagem é a insinceridade"9. Hipérbole implícita requer falta de sinceridade, só pode funcionar se a mensagem primária do falante não é explicitamente reconhecida. tanto a hipérbole implícita quanto a inflação conceitual tentam persuadir não apresentando razões mas reembaralhando as associações emocionais da audiência. Ambos envergam ou quebram várias normas da linguagem para efeito emotivo. Ambas manipulam a audiência, e tornam mais difícil para as pessoas comunicar-se.

Felizmente, todos nós temos os meios para combater essa corrupção da linguagem. Em uma linguagem natural, a comunidade de falantes como um todo, e não alguma autoridade central, é o árbitro final do que é e do que não é uma fala boa. É por isso que o IngSoc, o partido totalitário que comandava a Oceania no romance 1984 de Orwell, está tão interessado em substituir o inglês por uma linguagem fabricada, a novilíngua. Um antigo gramático disse ao imperador romano Tibério: "Tu, César, tens o poder de fazer de um homem um cidadão de Roma, mas não o de fazer de uma palavra uma cidadã do idioma romano"10. Tibério pode não ter tido esta autoridade, mas a comunidade dos falantes de latim da qual ele fazia parte tinha.

Os garotos pastores na versão modificada da fábula de Esopo não podiam ter inflado o conceito de "lobo" sem a aquiescência do povo da aldeia. Eles podiam ter gritado "Lobo!", mas sem a mais abrangente tácita concordância à ideia de que "lobo" significa "todas as criaturas ameaçadoras" este grito seria simplesmente uma mentira. Esta mentira teria consequências - alguns aldeões seriam temporariamente enganados e eventualmente todos deixariam de acreditar nos garotos - mas o dano seria localizado. Não haveria nenhuma confusão mais abrangente na linguagem acerca do que é um "lobo".

Todos nós temos responsabilidade de ser bons administradores das linguagens que falamos. Nós a moldamos quando decidimos aceitar ou rejeitar novas cunhagens e expressões. Quando adotamos novas palavras que rotulam coisas importantes de forma útil, como "gaslighting" em seu rótulo original, nós melhoramos a linguagem. Quando permitimos que linguagem desleixada prolifere - por exemplo quando usamos a palavra "literalmente" para significar "metaforicamente" - nós degradamos a linguagem e tornamos a comunicação mais difícil entre todos. Isto é análogo a poluir um recurso comum como a água ou o ar.

Se o uso de alguma palavra parecer duvidoso, então leve sua própria reação a sério e faça sua preocupação ser notada. É claro, nossas intuições linguísticas não são mais autoritativas que aquelas de qualquer outro falante igualmente competente. Tais desacordos podem indicar que o significado de uma palavra pode estar incerto ou vago. Por outro lado, quando a linguagem parece bastante duvidosa, e a incerteza da expressão facilita os objetivos retóricos do falante, é razoável suspeitar de sofisma. Eu já dei diversos exemplos que parecem exaurir o princípio da caridade dessa forma. Diante de flagrantes abusos da linguagem, devemos ser incisivos: Danem-se suas mentiras, isso não é um lobo!


Spencer Case tem um PhD em filosofia pela University of Colorado Boulder. Ele
escreve para o Quillette, National Review, e outras revistas. Você pode segui-lo
pelo Twitter: @SpencerJayCase


1 META

Table 1: META
Título Original The Boy Who Inflated the Concept of 'Wolf'
Autor Spencer Case
Link Original https://quillette.com/2019/02/14/the-boy-who-inflated-the-concept-of-wolf/
Link Arquivado http://archive.is/J4sMI

Footnotes:

1

Dotson, Kristie. 2011. "Tracking Epistemic Violence, Tracking Practices of Silencing" Hypatia vol. 26, no. 2., p. 238.

2

Davis, Angelique M. and Rose Ernst. 2017. "Racial gaslighting," Politics, Groups, and Identities vol. 0, no. 0., p 4-5.

3

Davis e Ernst escrevem: "Definimos gaslighting racial como o processo político, social, econômico e cultural que perpetua e normaliza a realidade da supremacia branca mediante a patologização daqueles que resistem. Assim como a formação racial repousa na criação de projetos raciais, o gaslighting racial, como processo, depende da produção de narrativas particulares. Essas narrativas são chamadas de espetáculos raciais. … Os espetáculos raciais são narrativas que ofuscam a existência de um estado de estrutura de poder supremacista branca." (2017, 3). Esta linguagem assume que exista um estado de estrutura de poder supremacista branca, de tal forma que qualquer um que a negar ao atribuir disparidades raciais a qualquer coisa que não seja racismo será acusado disso. De fato, eles seguem mencionando como exemplo a "narrativa de ação anti-afirmativa" que iniciou-se nos anos 1990.

4

McKinnon, Rachel. 2017. "Allies Behaving Badly: Gaslighting as a Form of Epistemic Injustice" in The Routledge Handbook of Epistemic Injustice, edited by Ian James Kidd, José Medina, and Gaile Pohlhaus, Jr. New York: Routledge, p. 168.

5

Uma noção correlata é "deformação conceitual", que se refere à expansão de termos ao longo do tempo. Isso pode ser intencional ou não. Por inflação conceitual, tenho em mente uma jogada retórica intencional. A inflação conceitual contribui para a deformação conceitual, mas nem toda deformação conceitial é devida à deliberada inflação conceitual para ganho retórico. Mesmo se não é intencional, a deformação conceitual pode dificultar nossa capacidade de comunicação.

6

Carroll, Lewis, Through Looking Glass, chapter 6, Humpty Dumpty.

7

Steinberg, D. I., Aung-Thwin, M. A. and Aung, M. H. 'Myanmar: The Emergence of Nationalism', em Encyclopedia Britannica Online, britannica.com/place/Myanmar/The-emergence-of-nationalism

8

Olhe, por exemplo, este artigo na página da ACLU: https://archive.fo/QW03Y

9

Orwell, George. "Politics and the English Language" em A Collection of Essays by George Orwell. Harcourt Brace Jovanovich, Inc.: New York, 1953, p. 167.

10

Pomponius Marcellus, citado em Essays on the Intellectual Powers of Man por Thomas Reid. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1969, p. 497.


Created: 2019-03-17 dom 16:56

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segunda-feira, 4 de março de 2019

De Pró-Escolha a Pró-Aborto [Wesley J. Smith]

De Pró-Escolha a Pró-Aborto

De Pró-Escolha a Pró-Aborto
Uma Nova Forma de Defesa do Aborto Mudará Em Breve Nossos Debates

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Por décadas, o interminável debate sobre o aborto tem sido sumarizado pelas sonoras mordidas no duelo dos pró-escolha e pró-vida. Bem lentamente, mas agora mais constantemente a premissa da defesa pró-vida – que o aborto não apenas silencia um coração batendo, mas arranca uma vida humana – ressoou ao público americano. De fato o próprio New York Times reporta que "um dos mais duradouros rótulos da política moderna - pró-escolha - perdeu a popularidade" como meio de promover políticas de direito ao aborto.

Esta é uma mudança notável. Mas pró-vidas não deveriam celebrar indevidamente. Em vez da moderação, ativistas adotaram um modelo de defesa que antes evitavam - ser explicitamente pró-aborto. Nesta nova abordagem, Roe vs Wade não é mais um momento de celebração. Em vez disso, ela deve ser derrubada porque é restritiva demais acerca do que eles consideram ser um direito absoluto de terminar uma gravidez indesejada, a qualquer momento, por qualquer razão.

Por que "pró-escolha" perdeu sua eficácia? Mendacidade tem seus custos. Entendendo a sentimentalidade do público sobre bebês, apologistas pró-escolha regularmente alegavam falsamente que seu objetivo era simplesmente fazer que o aborto seja "seguro, legal e raro". Isto funcionou por um tempo. Mas conceder que o aborto seja "raro" implicitamente admitiu a premissa fundamental do movimento pró-vida - que a entidade terminada num aborto é muito mais que um apêndice inflamado. Eventualmente, a força pura da lógica e dos fatos ajudou a levar o país para uma direção mais pró-vida.

Segundo, maior parte dos sucessos pró-vida anteriores - como o estatuto federal proscrevendo o aborto por nascimento parcial - primariamente restringiam terminações mais tarde na gravidez. Mas legislação pró-vida recente em estados conservadores tem seriamente erodido o acesso fácil ao aborto precoce, quando a maioria dos 1,3 milhão de terminações anuais são feitas. Contra-atacar esta tendência exigirá convencer o país - ou ao menos as cortes judiciais - que o aborto é um bem positivo.

Tome o caso do Texas: uma nova lei exigindo que abortistas tenham privilégios de admissão 1 em um hospital local (entre outras provisões) sobreviveu a constatações judiciais iniciais. A imposição legal fez a Planned Parenthood fechar clínicas pelo estado todo (minando a assertiva dúbia de que o aborto constitui somente três por cento de seus serviços). No futuro próximo, a não ser que cortes diferentes intervenham, todas exceto um punhado de clínicas de aborto do Estado da Estrela Solitária 2 podem fechar.

Tantos sucessos têm incitado uma reação pró-aborto mais honesta. Por conseguinte, ao escrever no Washington Post, Janet Harris insistiu aos leitores que "Parem de Chamar o Aborto de Decisão Difícil":

Quando a comunidade pró-escolha enquadra o aborto como uma decisão difícil, isto implica que as mulheres precisam de ajuda para decidir, o que abre a porta para leis paternalistas e aviltantes de "consentimento informado" …

Mas há um resultado ainda mais pernicioso quando defensores pró-escolha usam tal linguagem: é um reconhecimento tácito de que terminar uma gravidez é uma questão moral necessitando de um debate ético. Dizer que decidir ter um aborto é uma "escolha difícil" implica um debate sobre se o feto deve ou não viver, portanto dotando-lhe de estatuto de ser. Isto coloca o foco no feto, em vez de na mulher.

Para o Salon, mary Elizabeth Williams expressou uma opinião similar no ano passado ao aprovar a decisão da Planned Parenthood em minimizar "pro-choice" como um meme de defesa. Perguntando, "Então e Daí que o Aborto Encerra uma Vida Humana?", Williams chega a uma premissa arrojada.

Nem toda vida é igual. Esta é uma coisa difícil para liberais como eu falar sobre, para que não acabemos vistos como stormtroopers amantes do painel da morte 3 mate-sua-vovó-e-seu-precioso-bebê. Mesmo assim, um feto pode ser uma vida humana sem ter os mesmos direitos que uma mulher em cujo corpo ele reside. Ela é quem manda. Sua vida e o que é correto para suas circunstâncias e saúde deve automaticamente derrubar os direitos da entidade não-autônoma dentro dela. Sempre. Aqui estamos testemunhando o início de uma nova impulsão filosófica direcionada em obter o que eu antes chamei nestas páginas de "uma reversão pró-aborto de Roe" que derrubaria a jurisprudência federal sobre o aborto por ser limitadora demais ao direito da mulher em abortar. As cortes já podem estar movendo-se nessa direção. Em Planned Parenthood v. Bentley, a lei do Alabama regulando clínicas de aborto - semelhante àquela do Texas - foi declarada inconstitucional.

isto pode não ser surpreendente, mas o raciocínio na decisão certamente é. O Juiz de Distrito Myron H. Thompson iguala acesso ao aborto com a Segunda Emenda, o que de todas as coisas deveria fazer os alarmes pró-vida soar bem forte:

Em seu núcleo, cada direito protegido é mantido pelo indivíduo: o direito de decidir ter o aborto e o direito de ter e usar armas de fogo para auto-defesa. Porém, nenhum destes direitos pode ser exercido completamente sem a ajuda de mais alguém. O direito ao aborto não pode ser exercido sem um profissional médico, e o direito de manter e portar armas significa pouca coisa se não existe direito de adquirir a arma ou munição.

Este é um grande passo na direção do direito absoluto de aborto, tão de fato notável que o caso foi celebrado pela repórter legal abertamente pró-aborto Linda Greenhouse como "notável e delicioso".

Eu creio que nos anos que se sigam os defensores dos direitos de aborto executarão um recuo estratégico que admita a humanidade do nascituro, conjuntamente com uma forte contra-ofensiva ignorando a relevância moral deste fato biológico. O que importa, os defensores vão crescentemente asseverar, é a garantia do estado de que os desejos reprodutivos da mulher serão cumpridos - com o aborto visto como uma maneira positivamente boa de fazê-lo. Pró-vidas terão que discernir rapidamente como contra-atacar esta nova e candidamente explícita defesa pró-aborto.

1 META

Table 1: META
Título Original FROM PRO-CHOICE TO PRO-ABORTION
Autor Wesley J. Smith
Link Original https://www.firstthings.com/web-exclusives/2014/08/from-pro-choice-to-pro-abortion
Link Arquivado http://archive.is/9RGw5

Footnotes:

1

Do original, "admitting privileges". Trata-se, muito resumidamente, do direito que o médico tem de admitir pacientes em um hospital em razão de trabalhar naquele hospital.

2

Uma referência ao Texas, especificamente em sua bandeira; a estrela solitária é tida como um símbolo de independência.

3

No original, death-panel-loving. Refere-se a uma metáfora de Sarah Palin, que afirmava que as legislações federais propostas para os que não tinham seguro-saúde criariam "painéis da morte" onde burocratas decidiriam quem merecia ou não tratamento.

Created: 2019-03-05 ter 01:04

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Uma Reversão Pró-Aborto de Roe vs Wade? [Wesley J. Smith]

Uma Reversão Pró-Aborto de Roe vs Wade?

Uma Reversão Pró-Aborto de Roe vs Wade?

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Ativistas pró-vida continuamente rezam pela reversão de Roe vs Wade. E com muitos de ambos os lados da divisa da questão do aborto concordando que a decisão foi seriamente falha, isto pode acontecer um dia. Mas e se a virada vier do outro lado?

A potencial possibilidade de uma "reversão reversa" (se quiser chamar assim) me atingiu enquanto assistia a advogados pró-vida discutindo a situação atual da litigação do aborto na University Faculty for Life Association Convention, na qual eu fui convidado a palestrar. Não estando envolvido com a jurispudência do aborto, eu estava interessado em ouvir sobre o estado corrente da lei neste campo contencioso.

Roe e seus casos progênies, como Planned Parenthood v. Casey, deixaram espaço para apoiadores pró-vida implantar estratégias de litigação e legislativas subversivas que abriram significativas rachaduras no dantes impenetrável muro judicial em volta do direito ao aborto. Por exemplo, decisões judiciais permitiram o banimento da maioria dos abortos tardios, um banimento no "aborto por nascimento parcial", períodos de espera obrigatórios, testes de ultrassom, e construção de códigos regulatórios em instalações de aborto – tudo contribuindo para uma redução substancial de terminações anuais.

Quase como um adicional, um dos presentes no seminário notou a implacável oposição da Magistrada da Suprema Corte Ruth Bader Ginsburg a este direito limitado de regular o status quo. Ginsburg acredita inflexivelmente que as mulheres têm negada a "igual estatura de cidadão" em razão dos limites postos em volta do acesso ao aborto. Não apenas isso, mas em uma furiosa dissidência da decisão da Suprema Corte em 2007 mantendo o banimento do aborto por nascimento parcial, ela (juntamente com Magistrado Breyer dos atuais) protestou contra a maioria que permitiu que "questões morais superassem direitos fundamentais".

Isso me soou como uma defesa de um irrestrito direito ao aborto a qualquer momento por qualquer razão. Então, perguntei ao advogado perito anti-aborto Clarke D. Forsythe – o consultor sênior da Americans United for Life – se a visão de Ginsburg aboliria toda a regulação sobre o aborto. Sim, ele me disse: se o direito ao aborto fosse baseado na "igual proteção da lei", em oposição a outros padrões constitucionais, isto "não permitiria regulação alguma em momento algum", talvez até mesmo "exigindo financiamento público para o aborto".

Em outras palavras, mesmo que os mais conhecidos esforços anti-Roe estejam apontados para derrubar este caso a fim de permitir uma maior regulação estatal, um significativo - e mais quieto - contra-ataque procura (essencialmente) reverter Roe tornando o direito ao aborto virtualmente absoluto. No mínimo, isso repararia aquelas rachaduras no muro de proteção.

Como posto por um artigo da UCLA Law Review favorável ao padrão de igual proteção, "Crucialmente, uma vez que a Suprema Corte reconhece que pessoas tenham um direito ao aborto em virtude de igual cidadania", o direito estaria "num alicerce legal e político mais forte", tornando-o muito menos suscetível à estratégia pró-vida atual de "tirar pelas beiradas".

Como se não bastasse, eu pensava sobre como Roe permitia alguns limites ao aborto baseado no "importante e legítimo interesse do estado em proteger a potencialidade da vida humana", um interesse que a Corte determinou que tornar-se-ia "forte" no ponto da "viabilidade fetal".

Mas muitas vozes poderosas não mais consideram "vida humana" como uma categoria moralmente relevante. Por exemplo, o movimento principal na bioética argumenta que o que importa não é ser "humano" mas possuir capacidades mentais suficientes – como ser auto-consciente – para ser considerado uma "pessoa". Nesta visão, apenas pessoas têm direito à vida. Dado que um feto não possui capacidades pessoais em qualquer momento durante a gestação – contrário a Roe –, o estado não tem interesse em proteger a vida fetal mesmo após a viabilidade.

Agora adicione um elemento extra à equação: Roe teve por intenção resolver de uma vez por todas a questão do aborto. Claramente não conseguiu. Muitos pró-escolha frustrados ainda sonham com a obliteração de todos os impedimentos para o aborto sob demanda.

O plano recentemente anunciado pelo governador de New York Andrew Cuomo de permitir a terminação de fetos viáveis a fim de proteger a "saúde da mãe" ilumina o potencial caminho adiante. O caso-companhia de Roe, Doe vs Bolton, definiu "saúde" de maneira abrangente, incluindo "todos os fatores - físicos, emocionais, psicológicos, familiares, e a idade da mulher - relevantes ao bem-estar da paciente gestante. Substituir "saúde" pelo atual padrão legal de vida-da-mãe para o aborto pós-viabilidade, Forsythe alerta, aparelharia a definição ilimitada de Doe, resultando eum uma licença ilimitada para o aborto tardio.

Relevante à derrubada de Roe vindo do outro lado, Forsythe diz, "Como matéria de política, a proposta de Cuomo faria em New York o que a visão judicial de Ginsburg imporia a toda a nação".

Finalmente, assuma uma Suprema Corte em que os Magistrados Clarence Thomas e/ou Antonin Scalia fossem trocados por alguns do pensamento de Ginsburg. Uma nova maioria 5-4 ou 6-3 então existiria a fim de tornar a igual proteção o pilar primário de suporte a uma licença para o aborto, talvez também instalando "pessoalidade" em lugar de "humanidade" como o padrão relevante para aplicar um direito à vida.

Isso - e não uma reversão pró-vida - seria o fim de Roe vs Wade.

1 META

Table 1: META
Título Original A PRO-ABORTION REVERSAL OF ROE?
Autor Wesley J. Smith
Link Original https://www.firstthings.com/web-exclusives/2013/06/a-pro-abortion-reversal-of-roe
Link Arquivado http://archive.is/6sdeY

Created: 2019-03-05 ter 00:52

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