domingo, 17 de março de 2019

O Garoto que Inflava o Conceito de 'Lobo' [Spencer Case]

O Garoto que Inflava o Conceito de 'Lobo'

O Garoto que Inflava o Conceito de 'Lobo'

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Uma das fábulas de Esopo fala de um garoto pastor que, do alto do seu tédio, repetidamente gritava "Lobo!" quando não havia lobo presente. Como resultado, os aldeões perderam fé em seu testemunho,, e ninguém mais ouvia seus alertas quando um lobo de verdade apareceu para devorar seu rebanho. A história nos mostra como é ruim mentir e por que é do nosso interesse sermos honestos. Mas mentir não é a única manipulação da linguagem que degrada a verdade. Considere uma história levemente diferente.

Suponha que em vez de um garoto pastor, existam algumas dúzias. Eles estão cansados de os aldeões dispensarem suas reclamações sobre criaturas menos apavorantes como cães dispersos e coiotes. Um deles propõe um plano: eles começarão a usar a palavra "lobo" para referir-se a todos os animais ameaçadores. Eles concordam e o novo uso cai na moda. Por um tempo, os aldeões de fato ficam mais suscetíveis a seus avisos. O plano sai pela culatra, porém, quando um lobo de verdade chega e o grito "Lobo!" falha em surtir o alarme que antes surtia.

O que os garotos da história fazem com a palavra "lobo", intelectuais modernos estão fazendo com a palavra "violência". Quando pessoas ordinárias pensam sobre violência, elas pensam em coisas como bombas explodindo, tiros de arma de fogo e brigas. A maioria das definições de dicionário para "violência" menciona dano ou força físicos. Acadêmicos, ignorando o uso comum, falam de "violência administrativa", "violência de dados", "violência epistêmica" e outras formas até então desconhecidas de violência. A filósofa Kristie Dotson define a última como se segue: "Violência epistêmica em testemunho é uma recusa, intencional ou não, de uma audiência em reciprocar comunicativamente um intercâmbio linguístico devido à ignorância perniciosa" 1.

O que Dotson chama de "violência epistêmica" não é violência de acordo com o uso ordinário ou do dicionário. Se intelectuais podem recrutar a palavra "violência", então presumivelmente eles podem fazer o mesmo com palavras mais fortes. Então, por que não chamar violência epistêmica de "estupro epistêmico"? De fato, por que não "genocídio epistêmico"? Afinal, todo genocídio destrói um povo no todo ou em parte, e parte de destruir um povo é destruir sua voz. Talvez isso possa ser feito por atos sutis de silenciamento. Isto é absurdo, claro, mas não há modo baseado em princípios de evitar movimentos como esse se aceitarmos cunhagens como "violência epistêmica".

A palavra "gaslighting" também tem sido abusada dessa forma. O termo surgiu de uma peça de 1938 do dramaturgo Patrick Hamilton, Gas Light, que depois foi adaptada para filmes na Bretanha e nos EUA, ambos com o nome Gaslight. O enredo é centrado numa mulher que começa a perder a firmeza na realidade por causa das mentiras patológicas do marido. De acordo com Dictionary.com, praticar "gaslight" em alguém é "fazer com que (uma pessoa) duvide de sua sanidade mediante uso de manipulação psicológica". Gaslighting é caracterizado por mentira descarada e pervasiva. O perpetrador pode confiantemente negar que a ouviu dizer algo que claramente disse momentos atrás.

Alguns intelectuais definem "gaslighting" de maneira tão frouxa que não é necessário envolver mentira descarada; desta forma, a fala que eles desgostam pode ser chamada de "gaslighting". Dois professores de ciência política na Seattle University escrevem: "Assim como o processo de supremacia branca não precisa que aqueles que são cúmplices entendam a natureza racista de suas ações, a consciência também não é determinativa de se o processo de gaslighting racial está ocorrendo"2. Exemplos de gaslighting racial, de acordo com eles, incluem grupos dominantes "policiando o tom" de minorias que têm todo direito de estar irritados sobre sua opressão e - aparentemente - expressar qualquer opinião conservadora acerca de raça.3

A filósofa Rachel McKinnon também faz o mesmo. Após descrever com precisão como A palavra "gaslighting" adentrou a linguagem e o que ela costumava significar, ela escreve:

Porém, não é este tipo de gaslighting que estou interessada para os propósitos deste artigo. Em vez disso, estou interessada na forma mais sutil, geralmente não intencional,onde o ouvinte não acredita ou expressa dúvida sobre o testemunho de um falante. Nesta forma epistêmica de gaslighting, o ouvinte do testemunho expresa dúvida sobre a confiabilidade da testemunha em notar os eventos com precisão. 4

McKinnon apresenta o seguinte relato como um caso de gaslighting "sutil". Uma mulher trans, Victoria, pensa que James está deliberadamente errando seus pronomes preferidos, e pronuncia seu nome corretamente, a fim de aviltá-la. Sua colega, Susan, duvida dessa interpretação e sugere que Victoria pode estar emocional demais e propensa a ouvir insultos verbais (consistentes com um estereótipo acerca de mulheres trans). A negação da perspectiva autoritativa de Victoria supostamente torna Susan uma gaslighter. É claro, dado que todos nós cometemos erros com essas coisas, Susan pode ter feito a coisa certa ao oferecer um ponto de vista diferente. Mesmo que Susan esteja mal orientada, suas palavras nada mais são que uma forma sutil de gaslighting assim como uma vespa é uma forma sutil de lobo, ou um insulto é uma forma sutil de assassinato.

Como "gaslighting" é o rótulo de um tipo de mau comportamento que não tem outra designação conveniente, inflar o significado desta palavra trava nossa capacidade de comunicação. Palavras que são abusadas da forma que "violência" e "gaslighting" estão sendo não podem nem mesmo ser ferramentas retóricas úteis por muito tempo, dado que suas associações negativas dependem do significado que elas tinham antes destas manipulações. Em algum momento, novas palavras terão que ser infladas para substituir os termos desnecessariamente inflados. Por conseguinte, ativistas semânticos devem continuamente vasculhar a terra em busca de palavras emocionalmente impactantes para serem colhidas, então deixadas para trás como cascas semânticas desidratadas.

Eu usarei o termo de inflação conceitual para descrever o que acontece quando falantes afrouxam o uso de uma palavra emocionalmente impactante a fim de manipular uma audiência5. Inflação aqui refere-se à expansão do número de coisas às quais uma palavra se refere, mas também sugere uma analogia com a inflação monetária. Quando falantes expandem a referência de uma palavra a fim de anexar sua associação a novas coisas, eles diluem as associações da palavra original. Assim como imprimir papel-moeda em excesso diminui o valor da moeda, inflação conceitual degrada o efeito retórico de palavras e frases infladas.

Inflação de conceito é bastante semelhante a mentir. Immanuel Kant observou que mentir não seria eficaz num mundo em que todos mentem, já que não se acreditaria em ninguém. assim como mentir é parasitário de uma norma da verdade, inflação de conceito é parasitário de normas de uso. Em Através do Espelho, Humpty Dumpty fala a Alice: "Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que eu escolhi que significasse - nada mais, nada menos"6. Porém, Humpty Dumpty está errado; se as pessoas pudessem definir o significado das palavras como bem entendessem, a linguagem não seria útil para a transmissão de ideias.

Nem toda revisão de uma linguagem que expande a referência de uma palavra se resume a inflação conceitual. Suponha que numa sociedade estratificada somente a morte de uma pessoa nobre possa ser chamada de "assassinato". Reformistas que acreditam no igual valor moral dos nobres e dos camponeses pode começar a chamar a matança injustificada de camponeses de "assassinato" também. Como a palavra original foi artificialmente manobrada desde o início, a revisão é guiada por princípio e não por manipulação. E nem por isso designar a matança injusta de camponeses como "assassinato" diminuirá o crime de matar nobres em circunstâncias semelhantes.

Inflação conceitual genuína nem sempre é errada, porém. Em meados do século XX, autoridades coloniais britânicas exigiam que os birmaneses os chamassem pelo título honorífico, "Thakin". Os locais minaram a autoridade destes colonos ao chamar todo mundo de "Thakin" de forma que o título perdeu sua significância7. Neste caso os locais inflaram a palavra "Thakin" porque suas associações positivas estavam sendo usadas para finalidades moralmente ruins. Existem discordâncias bem intencionadas sobre se o inflação conceitual é moralmente justificável, mas existem também casos bastante límpidos de inflação grosseira, como é o caso com "violência" e "gaslighting". Outros exemplos conspícuos incluem "racismo", "sexismo" e "colonialismo".

Hipérbole implícita é um abuso de linguagem semelhante à inflação de conceito. Ela ocorre quando uma palavra emocionalmente carregada é apropriada como um termo de arte. Apesar de o falante reprovar o significado comum da palavra, a palavra original carrega sua força retórica ao termo estipulado. Hipérbole implícita é o oposto especular do eufemismo, a substituição de linguagem inofensiva ou indireta para algo mais perturbador - exempli gratia, "neutralizar o objetivo" em vez de "matar".

Da mesma forma que o eufemismo pode embotar a resposta emocional apropriada a coisas como matança, hipérbole implícita é uma estratégia para ativar respostas morais desproporcionais ou nada razoáveis. Um exemplo é "apagar/apagamento" em frases como "apagar as vozes de mulheres de cor", "apagar pessoas pretas" e "o apagamento de corpos negros". Quando a administração de Trump tomou a posição de que a palavra "sexo" nas leis federais de direitos civis significa "sexo biológico" e não "gênero", alguns ativistas acusaram-na de tentar "apagar o povo trans"8.

Não incidentalmente, quando penso em "apagar pessoas", penso no totalitarismo: polícia secreta levando pessoas na calada da noite para nunca mais serem vistas, ou um grupo inteiro de pessoas sendo expurgadas mediante genocídio. Os editos de Trump não fazem nada disso com pessoas trans, é claro. Nem as pessoas que criticam o "apagamento' de Trump dizem outra coisa; a terminologia insinua uma conexão com estas atrocidades que eles não se atrevem a explicitar. Presumivelmente, eles usam a palavra "apagar" como termo de arte por causa de sua bagagem, e não apesar dela. A mensagem real é sussurrada ao subconsciente, e nunca oficialmente reconhecida.

Este tipo de mensagem pode ser útil para incendiar a oposição às políticas do presidente, mas manipula a audiência pela tentativa de burlar sua racionalidade. Em retórica desse naipe, a função primária das palavras é transmitir emoção, não significado. Os termos são vazios, como cavalos-de-Troia linguísticos com intenção de contrabandear associações na periferia da mente consciente sem o cérebro superior notar a brecha de segurança. Além disso, é desrespeitoso às vítimas de atrocidades totalitárias explorar nosso horror a esses eventos mediante vantagens retóricas.

Comunicação eficaz requer veracidade, que é mais que não contar mentiras. Os falantes devem também dizer, ou pelo menos estar dispostos a dizer, o que eles realmente querem dizer. George Orwell escreveu que "O maior inimigo da clara linguagem é a insinceridade"9. Hipérbole implícita requer falta de sinceridade, só pode funcionar se a mensagem primária do falante não é explicitamente reconhecida. tanto a hipérbole implícita quanto a inflação conceitual tentam persuadir não apresentando razões mas reembaralhando as associações emocionais da audiência. Ambos envergam ou quebram várias normas da linguagem para efeito emotivo. Ambas manipulam a audiência, e tornam mais difícil para as pessoas comunicar-se.

Felizmente, todos nós temos os meios para combater essa corrupção da linguagem. Em uma linguagem natural, a comunidade de falantes como um todo, e não alguma autoridade central, é o árbitro final do que é e do que não é uma fala boa. É por isso que o IngSoc, o partido totalitário que comandava a Oceania no romance 1984 de Orwell, está tão interessado em substituir o inglês por uma linguagem fabricada, a novilíngua. Um antigo gramático disse ao imperador romano Tibério: "Tu, César, tens o poder de fazer de um homem um cidadão de Roma, mas não o de fazer de uma palavra uma cidadã do idioma romano"10. Tibério pode não ter tido esta autoridade, mas a comunidade dos falantes de latim da qual ele fazia parte tinha.

Os garotos pastores na versão modificada da fábula de Esopo não podiam ter inflado o conceito de "lobo" sem a aquiescência do povo da aldeia. Eles podiam ter gritado "Lobo!", mas sem a mais abrangente tácita concordância à ideia de que "lobo" significa "todas as criaturas ameaçadoras" este grito seria simplesmente uma mentira. Esta mentira teria consequências - alguns aldeões seriam temporariamente enganados e eventualmente todos deixariam de acreditar nos garotos - mas o dano seria localizado. Não haveria nenhuma confusão mais abrangente na linguagem acerca do que é um "lobo".

Todos nós temos responsabilidade de ser bons administradores das linguagens que falamos. Nós a moldamos quando decidimos aceitar ou rejeitar novas cunhagens e expressões. Quando adotamos novas palavras que rotulam coisas importantes de forma útil, como "gaslighting" em seu rótulo original, nós melhoramos a linguagem. Quando permitimos que linguagem desleixada prolifere - por exemplo quando usamos a palavra "literalmente" para significar "metaforicamente" - nós degradamos a linguagem e tornamos a comunicação mais difícil entre todos. Isto é análogo a poluir um recurso comum como a água ou o ar.

Se o uso de alguma palavra parecer duvidoso, então leve sua própria reação a sério e faça sua preocupação ser notada. É claro, nossas intuições linguísticas não são mais autoritativas que aquelas de qualquer outro falante igualmente competente. Tais desacordos podem indicar que o significado de uma palavra pode estar incerto ou vago. Por outro lado, quando a linguagem parece bastante duvidosa, e a incerteza da expressão facilita os objetivos retóricos do falante, é razoável suspeitar de sofisma. Eu já dei diversos exemplos que parecem exaurir o princípio da caridade dessa forma. Diante de flagrantes abusos da linguagem, devemos ser incisivos: Danem-se suas mentiras, isso não é um lobo!


Spencer Case tem um PhD em filosofia pela University of Colorado Boulder. Ele
escreve para o Quillette, National Review, e outras revistas. Você pode segui-lo
pelo Twitter: @SpencerJayCase


1 META

Table 1: META
Título Original The Boy Who Inflated the Concept of 'Wolf'
Autor Spencer Case
Link Original https://quillette.com/2019/02/14/the-boy-who-inflated-the-concept-of-wolf/
Link Arquivado http://archive.is/J4sMI

Footnotes:

1

Dotson, Kristie. 2011. "Tracking Epistemic Violence, Tracking Practices of Silencing" Hypatia vol. 26, no. 2., p. 238.

2

Davis, Angelique M. and Rose Ernst. 2017. "Racial gaslighting," Politics, Groups, and Identities vol. 0, no. 0., p 4-5.

3

Davis e Ernst escrevem: "Definimos gaslighting racial como o processo político, social, econômico e cultural que perpetua e normaliza a realidade da supremacia branca mediante a patologização daqueles que resistem. Assim como a formação racial repousa na criação de projetos raciais, o gaslighting racial, como processo, depende da produção de narrativas particulares. Essas narrativas são chamadas de espetáculos raciais. … Os espetáculos raciais são narrativas que ofuscam a existência de um estado de estrutura de poder supremacista branca." (2017, 3). Esta linguagem assume que exista um estado de estrutura de poder supremacista branca, de tal forma que qualquer um que a negar ao atribuir disparidades raciais a qualquer coisa que não seja racismo será acusado disso. De fato, eles seguem mencionando como exemplo a "narrativa de ação anti-afirmativa" que iniciou-se nos anos 1990.

4

McKinnon, Rachel. 2017. "Allies Behaving Badly: Gaslighting as a Form of Epistemic Injustice" in The Routledge Handbook of Epistemic Injustice, edited by Ian James Kidd, José Medina, and Gaile Pohlhaus, Jr. New York: Routledge, p. 168.

5

Uma noção correlata é "deformação conceitual", que se refere à expansão de termos ao longo do tempo. Isso pode ser intencional ou não. Por inflação conceitual, tenho em mente uma jogada retórica intencional. A inflação conceitual contribui para a deformação conceitual, mas nem toda deformação conceitial é devida à deliberada inflação conceitual para ganho retórico. Mesmo se não é intencional, a deformação conceitual pode dificultar nossa capacidade de comunicação.

6

Carroll, Lewis, Through Looking Glass, chapter 6, Humpty Dumpty.

7

Steinberg, D. I., Aung-Thwin, M. A. and Aung, M. H. 'Myanmar: The Emergence of Nationalism', em Encyclopedia Britannica Online, britannica.com/place/Myanmar/The-emergence-of-nationalism

8

Olhe, por exemplo, este artigo na página da ACLU: https://archive.fo/QW03Y

9

Orwell, George. "Politics and the English Language" em A Collection of Essays by George Orwell. Harcourt Brace Jovanovich, Inc.: New York, 1953, p. 167.

10

Pomponius Marcellus, citado em Essays on the Intellectual Powers of Man por Thomas Reid. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1969, p. 497.


Created: 2019-03-17 dom 16:56

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