Eu fiz um aborto, e não foi nada parecido com o episódio de natal de Scandal
Seja lá o que você pense acerca do projeto de lei sobre a Planned Parenthood, aborto sempre será um grande assunto
Noite passada o Senado dos EUA votou pela interrupção de fundos governamentais para a Planned Parenthood. Conhecida principalmente por ser o maior negócio fornecedor de aborto nos Estados Unidos, Planned Parenthood esteve bastante presente nos noticiários recentemente - do detestável ataque a uma de suas clínicas por um um atirador, à igualmente perturbadora divulgação dos vídeos com executivos da PP estabelecendo preços de partes fetais. Com a eleição presidencial às portas, você pode dizer que o debate nacional envolvendo o financiamento governamental da PP alcançou um clímax, ao ponto de aparecer em um episódio de natal do muito acompanhado show de TV 'Scandal'.
No episódio final da temporada de inverno de Scandal, que foi ao ar 19 de novembro, os espectadores acompanharam uma história que veio do nada e desapareceu tão do nada quanto. Após um episódio com o plano de fundo dos recursos da PP em balanço (e, ao contrário do que aconteceu na vida real, no episódio o projeto de lei pela interrupção não passou), o episódio termina com uma cena da protagonista Olivia Pope fazendo um aborto. Como que tentando atrelar com os elementos natalinos do final da temporada de natal, a cena foi formada com a trilha sonora de Silent Night.
Alguns responderam que este episódio é uma corajosa cobertura de um assunto importante. Mas como alguém que passou por um aborto, eu odiei. Eu achei que ele deu a impressão de um retrato despreocupado de uma coisa muito séria pela qual muitas mulheres passam pela experiência, e de uma tática política baixa e barata.
Aborto é atualmente parte de nossa cultura, querendo ou não, e assim sendo ela naturalmente será retratada na cultura popular e na TV. Eu assisti a episódios de outras séries de TV que lidaram com o aborto, como Parenthood ou Grey's Anatomy. Eu não tenho problema com o fato de o aborto ter sido retratado em um show do mainstream; o problema é como foi retratado. Eu vejo que o aborto é geralmente retratado como sendo uma decisão fácil, rápida e quase indolor que permite a uma mulher apertar o botão de Pause na sua vida, mesmo que por um momento, e então retomar a vida como se o aborto jamais tivesse ocorrido. O rápido procedimento pelo qual Olivia passou parece expressar que fazer um aborto não é lá grande coisa. Como alguém que esteve numa sala de espera, eu achei o episódio profundamente insensível com mulheres que passaram por um aborto. Claro, cada um tem experiências diferentes, mas o que foi mostrado em Scandal foi completamente diferente de como o aborto é normalmente vivenciado por mulheres, e certamente contrário à minha experiência.
Desde meu aborto, eu tenho caminhado uma jornada de cura, mas tem sido uma longa e dura jornada. Algumas vezes eu penso que estou indo bem, e algo acontece; uma imagem, uma palavra, um cheiro, um gatilho. Meu coração acelera, tenho que respirar mais fundo apenas para suportar, tento segurar as lágrimas. Momentos como o desse episódio.
Como qualquer episódio natalino, o visual incluía luzes piscantes, abetos, copos-de-leite, você sabe; dava quase para sentir o cheiro de natal na sua tela de TV. Mas então vemos uma sala de espera aveludada, e uma mulher pergunta a Olivia se está pronta. As cenas pulam para outros personagens, mas então a câmera volta para Olivia, ela está em uma mesa, pés em estribos. Um médico assentou entre seu joelhos um prolongador para um instrumento em forma de gancho, movimentando ao longo de sua pelve, e então liga uma máquina com um som suave como um sussurro. O médico então é visto colocando um tubo de limpeza, enquanto Olivia segura na barra da cama do hospital, aparentando estar pensativa. A próxima cena de Olivia a mostra em sua casa, freneticamente procurando por bebida alcoólica.
Eu estive numa sala de espera como a da Olivia. Eu esperei numa sala por quase nove horas junto a outras quarenta mulheres, todas esperando pelo mesmo procedimento. Nós não ficamos assistindo às notícias de política do dia na TV enquanto esperávamos. Minha sala de espera era gelada, e tão quieta que seria possível ouvir uma agulha caindo. Eu estive naquela sala de procedimento, só que a sala que eu estava não era nada limpa ou moderna.
Eu encontrei aquele médico. O provedor do meu aborto passou o pouco tempo que esteve comigo perguntando questões aviltantes como "Cê já não é grandinha para saber como evitar isso?" e "Quantas vezes vou te ver aqui neste ano?" Nunca me senti tão minúscula e irrelevante em toda minha vida.
Eu fiquei deitada naquela mesa. Eu senti aquele instrumento. Assistindo à Olívia apenas se dentar como se estivesse fazendo um papanicolau, aparentando não ser afetada pelos instrumentos médicos abrindo o colo e raspando o seu útero. Ela não parece estar drogada, não aparenta estar entorpecida. Ela quase parece... confortável.
Nada poderia estar mais distante do que eu passei. Eu não fiquei confortável. Eu experimentei uma dor terrível. Fechei meus olhos forte e agarrei a mão da enfermeira que estava próxima a mim. Enquanto eu assistia a cena em Scandal, uma onda de tristeza me arrebatou quando notei que Olivia sequer tinha uma enfermeira para segurar sua mão... ela estava travada segurando a barra da cama.
Eu ouvi aquela máquina. Eu sei o som que ela fez e o que ela fazia. Não foi um som calmo e suave de um sussurro. Foi um som forte de aspirador acompanhado pelo barulho de carne sendo sugada... minha carne... minha própria criança... do meu útero.
E como em sua busca por álcool, eu bebi aquele drinque... tentei anestesiar a dor e a memória; eu tentei esquecer o passado mesmo que por um momento ou dois.
Com este episódio de Scandal, meu coração despedaçou-se não apenas por causa do aborto experimentado por um personagem que eu viria a me identificar, mas também por causa da trilha sonora. Tocar um belo hino natalino sobre a indubitavelmente mais famoso nascimento celebrado na história com uma cena que termina uma gravidez é repugnante.
Silent night Holy night All is calm All is bright 'round yon virgin mother and child Holy infant so tender and mild Sleep in heavenly peace
Tenho certeza que a passagem desta canção durante a cena foi intencional, politicamente encomendada, e com o objetivo de incitar as coisas. Mas eu me pergunto se os escritores e produtores deste episódio cogitaram o quão incrivelmente danosas imagens como aquelas podem ser para mulheres que abortaram, causando reações como memórias recorrentes, pesadelos ou ansiedade piorada.
Mostrar uma protagonista tendo um aborto como se não fosse lá grande coisa mostra uma imensa mensagem. Envia uma mensagem de que é assim que as pessoas devem ver o aborto - como se fosse algo pacífico, ou mesmo que os sentimentos de mulheres que, como eu, fizeram aborto, que o veem como traumático, são de alguma forma inválidos. Penso que é correto dizer que não importa a sua posição no espectro político sobre aborto, é incorreto dizer que não é lá grande coisa.
Após assistir a episódios desse tipo, os espectadores serão capazes de desligar a TV sem ficar agitados, sem ficar perturbados, sem ficarem afetados? Eu creio que não. Eu creio que os escritores do episódio esperavam obter exatamente isto. Mas eu duvido que eles tenham noção do quanto isto, para espectadores como eu, machuca.
Título Original | I've had an abortion, and it wasn't anything like Scandal's Christmas episode |
Autor | Megan Rhoades |
Link Original | http://verilymag.com/2015/12/scandal-winter-finale-planned-parenthood-defunded |
Link Arquivado | http://archive.today/spqXK |
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